A Serpente


Crítica

São Paulo, 21 de janeiro de 2006 Folha acontece
Teatro/ Crítica
Yara de Novaes assina seu nome em montagem de Nelson Rodrigues
Sérgio Salvia Coelho

Nelson Rodrigues é nosso Shakespeare. Burra de unanimidade, a frase se justifica pela releitura que cada geração faz do autor, tendo que dar conta, como em Titus Andronicus, de um grotesco quase paródico sem cair no deboche esvaziador.

A complicada estratégia é resolvida com arrojo por esta “Serpente” de Yara de Novaes. Apoiada em um cenário instigante de André Cortez, que desloca as referências do real como em um quadro de Magritte, e na trilha de Morris Piccioto que transforma os diálogos em paisagem sonora, o incômodo desejo cotidiano da trama contorce os atores em coreografias vigorosas, o que já vem se constituindo em estilo da diretora.

Novaes, no entanto, não resiste à tentação de “assinar” o espetáculo com truques desnecessários, como o uso de microfones em cena, o que se torna um trunfo na mão do experiente Augusto Madeira mas que acentua a fragilidade da interpretação de Alexandre Cioletti.

Débora Falabella está correta, dosando com segurança realismo e expressionismo, enquanto Mônica Ribeiro, se arriscando mais no humor, por outro lado excede às vezes no histriônico. Cyda Morenyz, em participação especial, tem a entrega exigida pelo autor para transformar o tipo em arquétipo.

Marcante, evitando o mau gosto e reatulizando a crônica carioca dos maus costumes, a montagem sacrifica a profundidade psicológica em nome da dinâmica do teatro-dança. Cumpre o atual função de Nelson Rodrigues no teatro brasileiro: é a prova de fogo vencida pela diretora Yara de Novaes.


O Estado de São Paulo
Crítica
Último trabalho do Grupo 3 de Teatro
Beth Néspoli

Para que fosse possível a convivência humana em sociedades organizadas, alguns desejos precisaram ser interditos. Reprimidos, ao irromper dos subterrâneos da alma - seja um amor incestuoso ou o impulso de matar um rival na posse do objeto amado -, vêm carregados de culpa e tragédia, mas nada têm de 'monstruosos', pelo contrário, são bem humanos. Do ato de revelar desejos considerados hediondos e fazê-los reconhecíveis ao espectador brota a força da perturbadora dramaturgia de Nelson Rodrigues.

A montagem de A Serpente, dirigida pela mineira Yara de Novaes, em cartaz no Teatro Faap, tem interpretações impecáveis, ritmo intenso, trilha sonora de Morris Piccioto de forte efeito dramático, um engenhoso cenário de André Cortez e boas soluções da direção, como na cena do corpo que cai. Mas é sobretudo a forma como lida com o desejo o que torna esse espetáculo atraente para o grande público. A montagem torna menos crua a investigação dos impulsos que vêm do inconsciente ao desviar o foco do desejo sexual para os laços familiares - e seus rompimentos dolorosos.

A libido não comanda, por exemplo, a cena do encontro 'proibido' e tão sofregamente buscado entre Paulo ( Alexandre Cioletti) e Ligia (Mônica Ribeiro). Pelo contrário. Há uma certa lassidão no corpo deles, que parecem mais interessados em 'discutir a relação' do que na entrega a um desejo, afinal, tão forte que rompeu interdições e bloqueou, em Paulo, a atração anterior. Da mesma forma, as cenas entre Décio (Augusto Madeira) e a empregada (Cyda Morenyx) - reveladoras de uma forma de desejo que envolve racismo, violência, dominação e lançam luz sobre sua impotência 'no lar'- ganham um atenuante tom cômico.

Seriam perdas, se tal esvaziamento não fosse absolutamente coerente com a concepção de Yara de Novaes, clara em suas intenções e precisa na sua realização. Ela centrou foco na relação entre as irmãs, aí sim, tornando quase explícito um insinuado incesto que se realiza por transferência. Em torno dessa relação de amor fraternal profundo, que depois de um ato de doação quase 'monstruoso' transforma-se em ódio igualmente intenso, gira toda a ação do espetáculo. Assim, nessa concepção, Paulo torna-se mero instrumento de realização dos desejos de Guida e Ligia, joguete nas mãos delas. O que justifica sua apatia e até, num breve momento, sua dor pelo casamento desfeito. Embora, em outra chave, o mesmo ocorra com o personagem de Décio, patético até nos momentos em que se julga no domínio.

Como não se trata de uma companhia teatral - em que o trabalho contínuo harmoniza linguagens -, dá para destacar nesse espetáculo uma ótima direção de atores. Nas cenas mais carregadas de emoção, o trio Débora Falabella (Guida), Mônica e Cioletti conseguem o feito tão raro de gritar sem estridências, porque ao aumento do volume de voz corresponde, nas suas interpretações, técnica e emoção apropriadas. O trio, e também Madeira quando aos três se junta num momento de embate envolvendo os quatro num quarto, realiza nessas cenas mais densas um balé cênico admirável - cada movimento, cada gesto, cada entonação parece brotar de uma necessidade interna do personagem, nada sobra, nada soa inadequado.

Impossível não ressaltar o carisma de Cyda Morenyx que atrai para si todos os olhares no pouco tempo que fica em cena. O brilho e o vigor presentes em sua atuação são fundamentais para neutralizar os sentidos negativos das ancestrais relações de poder embutidas no seu relacionamento com o 'patrão' Décio. O uso de microfones nos solilóquios, numa remissão dupla aos MCs e também a estes nossos tempos, nos quais intimidades são confessadas em público, é um entre outros artifícios dessa montagem que capricha nos detalhes atraentes, com a sabedoria de não transformar efeito em ruído.


Fotos


Sobre o Autor

Nelson Rodrigues revolucionou de tal forma os palcos brasileiros que se pode denominá-lo como um divisor de águas dentro de nossa tradição teatral. Seu interesse maior está em mostrar a classe média suburbana carioca, que esteve presente em sua vida de jornalista e de homem comum. Suas peças denunciam a hipocrisia e a falsidade que estavam por trás das belezas dessa classe média. Seu ponto de princípio é sempre o sexo reprimido e deformado por uma gama de costumes morais, sociais e religiosos, que fazem com que seus personagens, tipos criados a partir da realidade das grandes cidades, tornem-se alienados ou conturbados a ponto de tornar seus desejos ou fobias verdadeiras obsessões que levam a suicídios, adultérios ou incestos. É o caos da cidade grande agindo juntamente com os conflitos psicológicos dentro do homem moderno, vítima de suas próprias, ações, leis e preconceitos morais. A crueza e a obscenidade estão sempre presentes para dar ao leitor ou à platéia a verdadeira e honesta dimensão da mente humana.


A Serpente

A Serpente foi lançada em 1980, poucos meses antes de Nelson Rodrigues falecer. É o texto mais curto do dramaturgo, com apenas um ato de duração, mas apresenta resumidamente as principais características que marcaram sua obra teatral. Com ritmo rápido e texto sucinto, Nelson Rodrigues conseguiu escrever uma peça inteira sobre um tema familiar e pouco ambicioso: a paixão de duas irmãs pelo mesmo homem.

Muito companheiras, as irmãs casaram no mesmo dia e foram morar no mesmo apartamento com seus respectivos maridos, Décio e Paulo. Um ano já se passou. Enquanto Guida vive uma intensa lua-de-mel, Lígia é praticamente virgem. Querendo morrer de desgosto, a irmã infeliz expulsa o marido de casa e comunica a Guida que está pensando seriamente em morrer. Guida faz a proposta: Lígia deve passar uma noite com Paulo, marido de Guida, para nunca mais pensar em morrer. A partir daí a história toma caminhos diferentes e o apartamento agradável fica a um ponto de ruir.


Direção

Yara Novaes

Quando começamos a ensaiar A Serpente percebemos que formávamos um conjunto de artistas brasileiros que tinham, entre outras características comuns, genes herdados de um pai-provedor chamado Nelson Rodrigues.

Como somos vários e de lugares diferentes – Minas, São Paulo, Rio, Pernambuco – a maneira de expressar esse legado também era diversa e muito instigante. Portanto, nossa primeira empreitada foi tentar construir um só corpo, que contivesse todas essas vozes e latitudes.

Somado a isso, por ser A Serpente uma síntese do universo rodrigueano, tivemos que rebobinar tudo que havíamos lido, visto e encenado de Nelson Rodrigues. E foi assim, com diálogos cênicos e literários, embates humanos e artísticos, que começamos a compreender porque e como cada um de nós está consangüineamente ligado ao teatro de Nelson.

E foi assim que adquirimos a liberdade e a consciência necessárias para encenar esse que é o seu derradeiro ato.

Yara de Novaes


Ficha Técnica

Autor
Nelson Rodrigues

Elenco
Débora Falabella como Guida
Cynthia Falabella como Lígia
Alexandre Cioletti como Paulo
Ator convidado
Augusto Madeira como Décio
Participação especial
Cyda Morenyx como Crioula das Ventas Triunfais
Mario Hermeto como Décio
Sarito Rodrigues como Crioula das Ventas Triunfais

Direção
Yara de Novaes

Preparação Corporal para a Cena
Mônica Ribeiro
Preparação Vocal para a Cena
Ernani Maletta
Assistente de Direção
Cacá Toledo
Estagiário de Direção
Rafael Chamié

Cenário e figurinos
André Cortez

Confecção de Cenário
Rio Cenário
Diretor de Palco
Tadeu Tosta
Confecção de Figurino Rio
Fátima de Léo

Iluminação
Telma Fernandes

Operador de Luz
Leopoldo Woop Pereira dos Santos

Trilha Sonora Original
Morris Piccioto

Produção Musical
Daniel Maia
Colaboração Musical
Chuck Hipólitho
Operador de som
Maurício Mateus

Direção de Produção
Gabriel Fontes Paiva

Coordenação de Produção
Luana Gorayeb
Produção executiva
Eliane Sombrio
Assistente de produção
Rafael Rezende
Estagiário de Produção
Rogério Ferraz Prudencio
Secretária de Produção
Daniela Rubio
Prestação de Contas
Anna Machado

Fotos
Nana Moraes
Lenise Pinheiro
Ana Mazzei

Comercial
Cara de Cão

Projeto Gráfico
Fonte31Design

Website
Homembala Multimídia

Assessoria de Imprensa
4 Elementos Comunicação

Realização
Fontes Realizações Artísticas

Grupo 3 de Teatro
Débora Falabella, Gabriel Fontes Paiva e Yara de Novaes

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