Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante

O Espetáculo

De Potosí ao KM 23, Brasil

O processo desta peça começou em abril de 2019, quando estivemos na Bolívia apresentando “Contrações”, do inglês Mike Bartlett, no Festival
Internacional de Teatro Santa Cruz de la Sierra. Paralelamente, levamos a leitura de “Neste mundo louco, nesta noite brilhante”, segundo trabalho com a dramaturga Silvia Gomez, parceira também de vida de todos nós – os três do Grupo 3 – desde as montanhas de Minas Gerais. A leitura aconteceu em um cinema antigo de Santa Cruz de la Sierra, o City Hall, que procura reviver agora como Teatro Aldea Cultural. Apesar das instalações ainda em adaptação, celebramos a honra de poder reabrir um espaço de cultura ao lado de nossos irmãos latino-americanos. Uma luz sempre acende quando um novo teatro abre as portas ou volta a funcionar – teatro, museu, cinema, escola ou qualquer lugar dedicado às artes e ao conhecimento. Ali, tivemos a companhia da banda Las Majas, composta por Isis Alvarado, Lucia Camacho, Lucia Dalence, Mayarí Romero e Marvin Montes, grupo que nos deu a mão pra valer naqueles dias. Junto do iluminador André Prado, do artista e parceiro Diego Dac, da produtora Heloisa Andersen e do operador de som Thiago Nunes Rocha, com offs de Natalia Mallo, projeções de Luiz Duva, figurino de Fabio Namatame e tradução de Carolina Virgüez, além de Luana Gorayeb e Rogério Prudêncio no apoio aqui no Brasil, colocamos as palavras de pé.

De Santa Cruz, seguimos para La Paz, cidade a 3 600 metros de altitude onde, de certa forma, identificamos a paisagem à qual pertencemos, memória de montanhas mineiras projetada nos Andes, tão bem pintados pelo artista plástico boliviano Fernando Montes (1930-2007), que nos inspirou com imagens mágicas para esta montagem. Não apenas ele, mas ainda as obras do Museo Nacional de Arte, cujo acervo do período colonial boliviano nos postou à frente de um curioso espelho: como não recordar a geografia mineira violada e nossos traumas históricos nas pinturas e esculturas da Virgen del Cerro encarnada no monte de Potosí, até hoje fonte de exploração de prata? Como não pensar nas tragédias recentes, de Mariana a Brumadinho? Conexões não tão diretas, mas que nos alimentaram nesse processo. Afinal, estamos falando de violação, estupro, violência. Os dados são claros e as taxas crescem. O Brasil é o quinto país do mundo que mais mata mulheres. O que isso diz de nós – que complexo sintoma é esse? Não temos resposta, apenas perguntas que procuramos elaborar numa espécie de delírio perplexo diante da realidade não menos delirante. Aqui estamos, com a alegria de conseguir trazer a Las Majas, fortalecendo essa ponte latino-americana. À turma, se juntou o Sesc São Paulo, além de André Cortez, Carol Bucek, Ana Paula Lopez, Lucas Santtana, André Omote, Dione Carlos, Maria Thais, Victória Martinez, Jessica Rodrigues, Cadu Cardoso, Leticia Gonzalez, Ana Luiza, Patrícia Cividanes e Pombo Correio. Muita gente com força para estar de pé neste KM 23, Brasil, espaço desta peça – a mesma força que encontramos à sombra da cordilheira, onde, vale lembrar, nasce o rio Amazonas.

Grupo 3 de Teatro
Débora Falabella, Gabriel Fontes Paiva e Yara de Novaes


Sobre a Autora

Silvia Gomez

Formada em Comunicação Social pela UFMG, também estudou teatro em Belo Horizonte. Em São Paulo, atua como jornalista e dramaturga. Integrou o CPT-Sesc, dirigido por Antunes Filho, onde escreveu e viu encenada a peça O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, publicada no livro Círculo de Dramaturgia pela Editora Sesc. Traduzido para o espanhol, o texto também figurou no livro Teatro Contemporáneo Brasileño, lançado em 2014 pelo Ministério das Relações Exteriores e teve versões para o francês, sueco, alemão, inglês, italiano e mandarim. Escreveu e encenou O Amor e Outros Estranhos Rumores, Abra A Janela Antes de Começar e “Mantenha Fora do Alcance do Bebê” (vencedora dos prêmios de dramaturgia APCA e Aplauso Brasil em 2015, além de indicada ao Prêmio Shell). Em 2015, integrou o projeto Curioso, residência de dramaturgia e intercâmbio cultural Brasil-Escócia. Em 2017, ministrou aulas de dramaturgia no CPT e entrou em cartaz com a peça Marte, Você Está Aí?, em São Paulo.

Dentes

Tentar escrever uma personagem que sobreviveu a 2.018 furacões e incontáveis tempestades, que dominou 517 cavalos selvagens, nadou com peixes monstruosos, cavalgou mil vezes por mil horas sem destino e esteve dentro de vulcões em atividade. Que andou descalça sobre fogo, assistiu séculos passarem como segundos, escalou as montanhas mais altas, conheceu o rosto da morte, conheceu o rosto do amor. Uma personagem que fale das profundezas sem deixar de tentar rir ou escapar.

São duas, na verdade, mas trata-se da mesma história humana. Duas mulheres em um pedaço de asfalto abandonado, o KM 23, Brasil. Elas têm muitos rostos. O rosto de quem ainda está perplexo.

Neste mundo louco, elas têm o rosto da minha tia Yara de Novaes, que um dia me contou sobre sua pior experiência, à qual sobrevivera, sacudira a poeira. Etc.

Nesta noite brilhante, ela tem o rosto da minha amiga Débora Falabella, que uma vez me disse sobre cair e depois ficar de pé.

Tentar escrever como quem delira, procurando no delírio algum diálogo em outro plano com a realidade impossível de alcançar. Tentar escrever como quem se pergunta se é possível encontrar a poesia sem fugir do impasse. Afinal, uma peça nasce de um impasse. É na carne do impasse que o teatro crava os dentes. Dentes. Escrevo essa palavra e penso logo em outra: piranha.

Final dos anos 80, meu nome é Silvia, algum lugar no sul de Minas Gerais. Sou quase adolescente, leio Agatha Christie, Hermann Hesse, Hemingway, Marion Zimmer, Clarice Lispector, mas o rádio toca uma música com o meu nome, Silvia. Os meninos da rua cantam quando eu passo. “Você me diz que não tá mais saindo / Mas eu desconfio que cê tá me traindo / Ô Silvia, piranha! / Ô Silvia, piranha!”.Como dividir com eles o que eu penso? Que piranha é uma palavra como qualquer outra. E que nenhuma palavra é uma condenação. Nem as mais assustadoras. A cada duas horas, uma mulher é morta no Brasil. Eu escrevi isso com palavras, você viu? São palavras.

Piranha, então, eu digo. Dessa, aprendi especialmente a gostar. Porque é forte e tem dentes. Como o teatro.

Silvia Gomez, dramaturga


Direção

Gabriel Fontes Paiva

Idealizou e realizou mais de 80 projetos culturais de destaque fundamentados em pesquisas e experimentações cênicas e construídos coletivamente com alguns dos principais artistas do teatro e da música da atualidade no Brasil. Dirigiu espetáculos de teatro, com destaque para “Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante”, “A Golondrina”, “Marte, Você Está Aí?” e “Uma Espécie de Alasca”. Concebe e dirige espetáculos musicais como a série “Na Mira”. Atua como curador, pesquisador e editor em projetos culturais de caráter documental, histórico e pedagógico, como as mostras “Murilo Rubião - O Reescritor Fantástico”, “Mostra Contemporânea de Arte Mineira” e a publicação “O Continente Negro”. Possui seu escritório de produção cultural desde 2001, a Fontes Realizações Artísticas. É diretor artístico da companhia teatral que fundou em 2005 juntamente com Yara de Novaes e Débora Falabella, o Grupo 3 de Teatro. Desde 2004, realiza os concertos do Projeto Memória Brasileira, ao lado de Myriam Taubkin. É presidente da APTI (Associação dos Produtores Teatrais Independentes), por onde colabora para a construção e o aprimoramento de políticas, leis e prêmios para a cultura em âmbito municipal, estadual e nacional. Ministra oficinas de política cultural, produção e formação de plateia para artistas, produtores e programadores.


Fotos


Crítica

Estado de São Paulo

Yara de Novaes e Débora Falabella jogam com alegorias em " Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante"

Ubiratan Brasil, O Estado de São Paulo
23 de agosto de 2019 / 03h00

Em uma rodovia abandonada, exatamente no Km23, uma vigia encontra, jogada nos asfalto, uma garota que delira, depois de ter sido violentada naquela noite, lindamente estrelada. "O fato não é espantoso já que justamente naquele quilômetro é comum as mulheres serem estupradas", observa a atriz Yara de Novaes, que interpreta a vigia em " Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante" , texto inédito de Silvia Gomez que estreia nesta sexta-feira, no Sesc Consolação.

A sensação de estranhamento, portanto, que inicialmente se espalha pelo público, logo é amainada pela descoberta do jogo entre as duas mulheres: trata-se, na verdade, de uma encenação, em que a linguagem não realista e poética, temperada por um humor ácido, é o caminho para o texto discutir as relações de dominação e resistência, de conflito e poder, praticadas pela humanidade desde tempos imemoriais "O assunto é grave, com certeza. Mas tratamos com um certo distanciamento, um pouco de ironia e uma trilha sonora marcada por música pop", completa Débora Falabella, que vive a garota delirante.

A referência musical não é a toa: além das duas atrizes, o palco também é ocupado pela banda boliviana Las Majas, que toca ao vivo a trilha composta por Lucas Santtana dialogando com as personagens . "Nós as conhecemos quando fizemos a primeira leitura do texto, justamente na Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra", explica o diretor Gabriel Fontes Paiva. "O texto da Silvia sugere a presença de um grupo música em cena e logo percebemos que essas moças, que tem uma formação clássica, ofereciam o som esperado.

Assim, quando os espectadores entram no teatro, encontram a dupla de atrizes e as quatro musicistas executando uma aquecimento com varas de bambu, coreografia criada por Ana Paula Lopes. Logo, o clima dramatúrgico se estabelece, mas é constantemente quebrado por elas. "Em determinados momentos, a vigia assume a direção, palpitando na iluminação, pedindo outras canções para a banda", conta Yara, que forma, ao lado de Débora e Gabriel, o Grupo 3 de Teatro, responsável por alguns dos mais instigantes espetáculos dos últimos anos, como Contrações (2013), com direção de Grace Passô, e Love Love Love (2017), dirigido por Eric Lenate.

"Será meu primeiro texto encenado pelo grupo, o que me deixa nervosa", brinca Silvia Gomez, cujas peças marcadas pela forte presença de alegorias a transforma em uma das principais dramaturgas brasileiras - ela assina textos com títulos instigantes, como O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, O Amor e Outros Estranhos Rumores, Marte, Você Está aí? e Mantenha Fora do Alcance do Bebê.

Em Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante..., ela se inspirou em uma tragédia ocorrida no Piauí, em 2015, quando quatro meninas foram estupradas e jogadas de um abismo. "Acho que a peça é um desabafo, alegoria, uma resposta artística a essa realidade, buscando falar dela em outra camada: escrevo sobre um encontro entre duas mulheres num km abandonado do Brasil", comenta. "Uma delas acaba de ser violentada e , no delírio da violência, fala. Buscou no delírio um diálogo com a realidade possível de alcançar. De que sintoma complexo do nosso tempo é do nosso País as estáticas falam? Não tenho respostas exatas, mas muita perplexidade e perguntas que procuro elaborar na cena absurda."

O tema é delicado, duro, difícil de ser absorvido, mas as mulheres em cena e a que assina o texto optaram pela via do humor ácido para lidar com uma linguagem tão realista, mas extremamente poética. "A graça nasce justamente do impasse em que as personagens se colocam", explica Débora. "Daí o fato de ser involuntário", completa Yara.

Segundo elas, a peça é um espelho de uma realidade que, de tão difícil de ser enfrentada, encontra saída pela arte teatral. "É a liberdade que temos em cena que nos permite lidar com o presente a até imaginar o futuro", comenta Gabriel Paiva.

À medida em que é apresentado, o texto revela sua dualidade ao se mostrar ao mesmo tempo político e psicológico, local e universal. "Em geralmente encontro personagens em situações de limite pessoal, emocional, às vezes, físico. Nesse lugar, onde as convenções parecem de repente suspensas, uma espécie de lucidez-delirante - assim mesmo, contraditória - toma corpo nas relações e na fala perplexa. Aquilo que não gostamos de dizer vem à tona, as palavras ficam perigosa e, ao mesmo tempo, quase engraçadas - há uma espécie de humor instável nascido do impasse", acrescenta a dramaturga, em texto de divulgação do espetáculo.

Observatório do Teatro - UOL

Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante: nova peça de Silvia Gomez

De Maurício Mellone
setembro 3, 2019

Yara de Novaes e Débora Falabella protagonizam montagem do Grupo 3 de Teatro.

O premiado Grupo 3 de Teatro, formado pelos mineiros Débora Falabella, Yara de Novaes e Gabriel Fontes Paiva, acaba de estrear, no SESC Consolação, a peça inédita Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante, da dramaturga Silvia Gomez, formada em Comunicação Social e Teatro em Minas Gerais e radicada em São Paulo desde 2001.

Ao lado da banda boliviana Las Majas e dirigidas por Gabriel, Yara e Débora vivem no palco um drama que infelizmente tornou-se corriqueiro entre nós: a cada dez minutos uma mulher é vítima de estupro e a cada duas horas, uma mulher é morta no Brasil. Entre o delírio e o real, a trama mostra a reação da vigia do km 23 de uma estrada brasileira (Yara) que vê uma jovem (Débora) sobreviver a um bárbaro estupro coletivo. Mais do que a violência brutal às mulheres, o espetáculo questiona a relação de poder e dominação entre as pessoas e põe em xeque o velho dilema do bem contra o mal.

Atrizes dividem o palco com a banda da Bolívia, Las Majas. Ao entrar, o público já se depara com as atrizes e as quatro instrumentistas da banda em exercício de aquecimento. Um pouco antes do início da trama elas fazem uma coreografia que mistura dança e luta. Introdução ideal para aquele embate que vai se seguir.

Como aponta o título da peça, naquela noite estrelada, durante o pouso e decolagem de aeronaves, a vigia do km 23 da estrada relata que naquele local (não seria mais propício dizer naquele país?) é comum mulheres serem violentadas. Imediatamente depois desta terrível constatação, uma garota aparece correndo e é estuprada por vários homens, de maneira selvagem. A vigia socorre a vítima, que sob efeito de medicamentos, delira sobre a realidade:

“Terminei este texto diante do aumento dos casos de estupro e violência contra a mulher no Brasil. A peça é uma resposta artística a essa realidade: escrevo sobre um encontro entre duas mulheres num km abandonado do país. Uma delas acaba de ser violentada e, no delírio da violência, fala. Busco no delírio, um diálogo com a realidade. De que sintoma complexo do nosso tempo e do nosso país as estatísticas falam? Não tenho respostas exatas, mas muita perplexidade e perguntas que procuro elaborar na cena absurda”, esclarece Silvia Gomez.

Com uma concepção cênica de impacto — cenário criativo de André Cortez aliado à projeção de vídeo e uma potente iluminação que complementam a narrativa —, o espetáculo envolve o espectador, que mesmo com dúvidas diante de tanto delírio da personagem, entra na torcida pela sua superação e para que ela consiga cantar:

“Se eu for capaz de cantar uma canção de amor neste mundo louco, nesta noite brilhante, então tudo será possível, até dar o fora daqui.”

A sintonia e a entrega total à proposta cênica de Yara de Novaes e Débora Falabella sustentam o espetáculo e o ritmo da montagem. Destaque ainda para a participação eletrizante e ao vivo da banda Las Majas. E depois do desfecho da trama, com o elenco todo reunido, Yara lê um manifesto contra a censura e na defesa da Arte. Nada mais adequado para um país que vive tempos sombrios e de desmandos.


Ficha técnica

Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes.

Texto: Silvia Gomez.

Direção: Gabriel Fontes Paiva.

Cenografia: André Cortez.

Vídeo Cenário: Luiz Duva.

Figurino: Fabio Namatame.

Iluminação: André Prado e Gabriel Fontes Paiva.

Trilha sonora original: Lucas Santtana e Fábio Pinczowisk.

Assistência de direção: André Prado e Ana Paula Lopez.

Assistente de Cenário e produção de objetos: Carol Bucek.

Assistente de Figurinos: Juliano Lopez.

Preparadora Vocal: Ana Luiza.

Preparadora corporal e Direção de movimento: Ana Paula Lopez.

Oficinas: Dione Carlos.

Workshops: Maria Thais.

Direção de Palco: Diego Dac.

Operação de Luz e vídeo: André Prado.

Operação de Som: Monique Salustiano.

Camareiro: Jô Nascimento.

Design de Som: André Omote.

Produção: Cadu Cardoso e Letícia Gonzalez.

Assistente administrativo: Rogério Prudêncio.

Assessoria de Imprensa: Pombo Correio.

Identidade Gráfica: Patrícia Cividanes.

Fotos de material gráfico e divulgação: Fábio Audi.

Fotos do espetáculo: Sergio Silva.

Gestão de Projeto: Luana Gorayeb.

Direção de Produção: Jessica Rodrigues e Victória Martinez.

Produção: Contorno Produções e Fontes Realizações.

Grupo 3 de Teatro: Débora Falabella, Gabriel Fontes Paiva e Yara de Novaes.

Grupo 3 de Teatro
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