O Espetáculo

Talvez seja mesmo o amor a nossa praia.

A história do Grupo 3 começou antes mesmo dele nascer, numa cidade, cujo nome, mesmo que inspirador, gera suas idiossincrasias: Belo Horizonte.

Foi lá que começamos a fazer teatro, uns antes, outros depois. Foi lá que nos cruzamos por diversas vezes nos palcos ou nos foyers, fazendo ou vendo muitas coisas que nos formaram.

Em BH a luz do Sol incide sobre as montanhas de uma tal maneira que faz com que o céu seja azul demais. Um azul tão azul que faz voar, sonhar. Sonhos cercados por uma serra chamada Curral - metáfora inequívoca do nosso também confinamento. É talvez essa condição irônica a geradora de premissas artísticas tão inquietantes.

Enfim, cada um de nós saiu de lá por razões diferentes, amor,trabalho. Um veio direto para São Paulo, e as outras duas foram antes ver o mar ! Mas acabaram aportando também nesse sonho feliz de cidade. E aí, nos encontramos de novo, doidos com a realidade e malucos para sonhar. Foi assim que resolvemos criar um grupo de teatro e o batizamos com o nome simples de Grupo 3. Isso foi em 2005,ano que estreamos A Serpente, texto de Nelson Rodrigues. Depois dela montamos O Continente Negro, de Marco Antônio de La Parra e fizemos a Mostra Contemporânea de Arte Mineira, quando trouxemos para São Paulo mais de 300 artistas e suas obras inquietantes.

Com a Mostra tivemos a oportunidade de rebobinar a nossa história e rever a nossa geografia. Nessa viagem reencontramos Murilo Rubião e o seu mundo particular tornou-se para nós imprescindível. Com ele e através dele poderíamos experimentar uma linguagem com lógica própria,adiante em expressões formais e filosóficas, onde todos os elementos da cena comporiam cada uma das frases de nossa dramaturgia. Para essa empreitada convidamos alguns ótimos parceiros com quem já havíamos trabalhado e começamos a ler os 33 contos publicados por Rubião. Desses contos, três tiveram suas histórias adaptadas para o espetáculo,mas todos eles, seja em pensamentos ,atos ou palavras foram também contemplados. Decidimos que o nosso recorte seria o amor, já que havíamos escolhido, de certa forma, também esse tema nas nossas montagens anteriores. Se na Serpente o mastigamos, no Continente o engolimos,agora,com o Rubião, poderíamos digeri-lo ou nos intoxicar de vez.

E, podemos confessar, que não foi fácil a nossa escolha porque o amante rubiônico está muito além dos paradigmas costumeiros para esse tipo de sentimento, na verdade, ele nem responde às nossas perguntas, só gera outras e outras e outras. E o amor só é uma das veredas de uma existência condenada ao absurdo. Mergulhamos num poço sem fundo, sem lugar marcado ou mesmo sem destino. Nossa entrega à sua obra foi tão radical que nos tornamos herdeiros de seu ato de reescrever. Desde que começamos, há seis meses, texto, elenco, cenários, figurinos, trilha, luz, mudaram muitas e muitas vezes. Mais do que é normal num processo teatral. Num certo momento eram tantas as dificuldades que parecia um anátema. Mas, não, não! Era só o Rubião: uma rima, não uma solução.


Sobre o Autor

O ato de reescrever define a trajetória do mineiro Murilo Rubião (1916-1991), cuja obra se condensa em 33 contos, enfeixados em sete livros, de O Ex-mágico (1947) ao O homem do boné cinzento (1991). Neste percurso, seus textos sofrem alterações e aparecem transformados em outro livro, sem que o seu sentido se altere significativamente. Verifica-se, de uma versão para outra – nos contos reescritos e republicados - um sistema contínuo de permutações, que coincide com a temática da metamorfose. A escrita parece refletir o gesto do escritor em sua busca pela clareza absoluta, pela coincidência entre palavras e coisas, pelo intangível.

Contos e personagens encontram-se condenados à repetição. A tríade condenação/infinito/absurdo se reflete em suas histórias, fazendo que seus seres ficcionais se espelhem mutuamente. A metamorfose habita personagens que se veem eternamente lutando com a impossibilidade de encontrar sua própria personalidade, de outros que não conseguem conter suas transformações físicas ou atingir os objetivos desejados.

Outra marca do escritor encontra-se na opção pelo fantástico, numa narrativa que apresenta aventuras extraordinárias e que rejeita a poética do realismo. Não se trata da recusa da realidade, mas sim da recusa de uma forma mimética de retratá-la. A concepção da arte narrativa como artifício ou construção aproxima-o da visão borgiana. Murilo Rubião, em seu universo insólito, adere à “primitiva claridade da magia” e à sua “ordem diversa, lúcida e atávica”.

Esse universo insólito – e seu humor peculiar - traduz-se pelo Grupo 3 de Teatro no espetáculo O amor e outros estranhos rumores. Reescrevem-se pela ação dramática as narrativas dos contos “Bárbara”, “Os três nomes de Godofredo” e “Memórias do contabilista Pedro Inácio”. As personagens murilianas ressurgem metamorfoseadas pela escrita teatral, deslocando-se no espaço cênico e transpondo os limites do texto, numa dramatização do seu espelhamento e de sua condenação. E seu gesto encontra-se dramatizado em momentos distintos da encenação.

Nesta releitura dramática destaca-se, ainda, a concepção do autor da relação amorosa, apresentada em sua obra ora de forma irônica, ora de forma melancólica. Murilo jamais se casou e não teve filhos. Em seus contos, o amor sucumbe-se no irrealizável. Qualquer tentativa de realização gera a frustração ou a morte, talvez numa constatação da impossibilidade do amor romântico.

Todo o processo de montagem da peça espelhou a tessitura da criação teatral, ao transmutar-se título, cenografia, construção das personagens. Assim, Murilo Rubião estranhamente influencia o processo de construção dos seus tradutores, contaminando-os com o desejo de reescritura.

SANDRA REGINA CHAVES NUNES


Fotos


Crítica

Murilo Rubião

Estreou, no Teatro Tuca, em São Paulo, uma peça inspirada em contos de Murilo Rubião. Confesso que fiquei receoso ao assisti-la pois se trata de um escritor fenomenal, com uma obra alicerçada basicamente no texto fantástico, uma raridade em nossa literatura. Mas fiquei plenamente satisfeito com 'O Amor e Outros Estranhos Rumores'.

A peça é a adaptação de três contos de Rubião (1916-1991), escritor em cuja escrita o real e o irreal convivem plenamente. Se inicialmente provoca uma certa surpresa, aos poucos o texto envolve o leitor graças à sua maestria e, ao final, o absurdo torna-se plenamente aceitável. Não se trata, porém, de mera fantasia – Rubião a utilizava como ferramenta para criticar a sociedade e também ressaltar os grandes dramas da existência humana. É o que se encontra em obras como 'O Pirotécnico Zacarias' e 'O Ex-Mágico', entre outras.

Assim, é fácil encontrar um homem conversando normalmente com um coelho, que se metamorfoseia a cada instante. Ou ainda um mágico que pretende ser devorado pelos leões que saem de seu bolso. Tudo encarado com maior normalidade. Veja esse trecho de 'Os Dragões': "Regressando, uma noite, de uma reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade".

O espetáculo dirigido por Yara de Novaes acerta em cheio ao respeitar o limite que essa escrita fantástica pode chegar ao palco. Diretora de outra bem sucedida adaptação de um livro para o palco ("As Meninas", de Lygia Fagundes Telles), Yara soube como materializar o absurdo e especialmente a inadequação do existir, que são questões primais na obra de Rubião.

Outro acerto fundamental foi o uso correto dos recursos cênicos, ou seja, a música e a iluminação auxiliam de forma decisiva o clima aparentemente fantástico daqueles homens que, de posse de um bilhete de trem que não determina dia, hora e tampouco o destino da viagem, buscam avidamente por uma resposta. Melhor ainda, por uma saída.

O essencial na transposição da obra era que o absurdo tivesse lógica e, principalmente, fosse rapidamente aceitável. No universo criado por Rubião, o homem é o ser carregado de vício, preconceito e desamor, e não os personagens fantásticos, como dragões e coelhos falantes.

Com um elenco excepcional (Débora Falabella, Maurício de Barros, Priscila Jorge e Rodolfo Vaz), Yara de Novaes continua com sua importante e vital pesquisa cênica da literatura brasileira, sempre reunindo ingredientes vitais: obras complexas que ganham uma versão inteligente e instigante. A montagem que ocupa a sala grande do Tuca é imperdível.

UBIRATAN BRASIL
http://blogs.estadao.com.br

Grupo 3 encena Murilo Rubião

SÃO PAULO – O Grupo 3 de Teatro monta "O Amor e Outros Estranhos Rumores", baseado na obra do principal escritor brasileiro dedicado exclusivamente ao gênero fantástico, Murilo Rubião. A estreia para o público será neste sábado (16), 21h30, no Tuca. Protagonizado pela atriz Débora Falabella e dirigido por Yara Novaes, quem dirigiu a atriz em peças como "Noites Brancas" e "A Serpente", a peça conta com a participação especial do ator Rodolfo Vaz (Grupo Galpão).

Adaptado pela dramaturga Silvia Gomez, que despontou no Núcleo de Dramaturgia do CPT (Centro de Pesquisa Teatral), coordenado por Antunes Filho, e lá sendo encenada a peça "O Sol Cinco Minutos Antes do Meio-dia", "O Amor e Outros Estranhos Rumores" entrelaça três contos de Rubião.

No primeiro, o amor ganha ares de lista contábil, como planilha de Excel. O protagonista chega a declarar "Jandira me custou tantas cartelas de aspirina e tantas passagens de bonde, me saiu por tantos contos de reis". Um homem que está sempre contabilizando seus ganhos e perdas no amor, um homem que nunca se realiza, um homem que nunca se satisfaz.

Na segunda trama, um homem meio Barba Azul, colecionador de esposas que vai matando, busca uma felicidade/ um amor inatingível, porque preso no plano da memória.

O terceiro conto adaptado, narra o amor de um marido por sua esposa alienada, imersa num universo próprio e narcísico. Seu apetite material é insaciável e ela não o vê senão como fonte de satisfação de seus desejos.

Por meio desses três contos que os atores – Maurício de Barros e Priscila Jorge,completam o elenco - buscam desvendar os relacionamentos e comportamentos humanos de acordo formal com o universo fantástico de Murilo Rubião.

O autor e sua obra

Autor de destaque dentro do realismo fantástico brasileiro, Murilo Rubião (1916-1991) teve três contos selecionados para essa encenação: O Contabilista Pedro Inácio, cujo personagem contabiliza os custos de um amor; Bárbara, em que um marido resignado se vê diante dos pedidos incessantes e nada comuns da esposa, que engorda a cada desejo satisfeito; e (Três nomes para) Godofredo, uma interpretação aguda sobre o casamento e a solidão. Mesmo dentro do absurdo essas histórias compõem um espetáculo que busca expressar o quanto há de ordinário e, ao mesmo tempo, extraordinário em nossas vidas.

A obra de Murilo Rubião permaneceu praticamente desconhecida para o grande público durante mais de três décadas. Mas a reedição do seu livro de contos O Pirotécnico Zacarias, em 1974, o tiraria do esquecimento.

MICHEL FERNANDES
http://colunistas.ig.com.br

O amor e outros estranhos rumores revela conjunto de acertos que vão da interpretação ao cenário

Espetáculo dirigido por Yara de Novaes é baseado em contos de Murilo Rubião

É muito boa a sensação de sair do teatro e ter visto uma sucessão de acertos. Assim é O amor e outros estranhos rumores, mais uma montagem do Grupo 3 de Teatro, com a assinatura de Yara de Novaes na direção e, no elenco, Débora Falabella, Maurício de Barros, Priscila Jorge e Rodolfo Vaz. A escolha de levar para a cena três histórias de Murilo Rubião é a primeira bola dentro do espetáculo.

Se adaptações já são complicadas – é sempre difícil ganhar da imaginação do leitor –, que dirá mexer com o universo fantástico do escritor mineiro. Mas a dramaturgia teatral de Silvia Gomez para os contos O contabilista Pedro Inácio, Três nomes para Godofredo e Bárbara não causa estranhamento, pelo contrário, captura a plateia. O mérito pode ser atribuído a duas coisas: ao domínio do que deseja a diretora Yara de Novaes e ao equilibrado elenco que ela tem em mãos.

Permeando todas as histórias há um personagem comum: o coelho, interpretado por Priscila Jorge. De terno e gravata, é ele quem, supostamente, deveria ter a resposta para a pergunta que os personagens fazem do início ao fim. Com bilhetes de viagem em branco nas mãos, as dúvidas são: como sair dali e para onde eles vão. É a partir daí que embarcamos nas histórias, marcadas pela fantasia e o absurdo.

A parceria entre Débora Falabel-la e Yara é de longa data e, pelo visto, tem a dose de sintonia aumentada a cada novo espetáculo. É a atriz a protagonista do primeiro conto. Ao surgir com uma carequinha, bigode e óculos, desperta, principalmente na plateia que foi ao teatro ver a moça da televisão, a dúvida: Será que é ela? Sim, é. O Pedro Inácio de Débora Falabella tem voz firme, corpo duro, presença forte. É o palestrante que vê o próprio mundo virar de ponta-cabeça ao constatar que não existem verdades absolutas, nem em teses.

Na sequência, Débora volta à cena como coadjuvante de Rodolfo Vaz em Três nomes para Godofredo. É mais um prato cheio para o ator de muitas nuances como ele. Recém-saído de um Beckett, Rodolfo embarca na atmosfera de Rubião fortalecido. Como Godofredo, provoca o riso sem deixar que se perca o tom absurdo e dramático da situação em que o personagem se encontra: o sufoco de uma relação que perdeu o sentido. Por fim, é a vez de Maurício de Barros contar a história de Bárbara, a mulher que só engorda. Como é o menos conhecido dos três, Maurício surpreende como o marido que não consegue dizer não a qualquer pedido da esposa.

SURPRESAS JUSTIFICADAS O amor e outros estranhos rumores é daquelas montagens em que tudo se ajusta. O cenário de André Cortez e a trilha sonora de Dr. Morris, ambos parceiros frequentes da diretora, não apenas compõem o conjunto teatral, mas dialogam o tempo inteiro com a trama. No caso do cenário, há surpresas a todo instante e elas são justificadas. O vídeo, por exemplo, não é usado como alegoria, ele completa o sentido da cena. E isso vale para qualquer objeto que aparece no palco: o poodle rosa de plástico, as mesas, os pratos esmaltados, as jabuticabas. Sem contar a precisa iluminação de Fábio Retti.

Se não há sobras em O amor e outros estranhos rumores, eis o mérito da diretora Yara de Novaes. Ao aparar arestas, ela recria um universo muito doido sem deixar essa impressão. Haverá quem saia do teatro fazendo as contas de quanto custa um amor, se perguntando se a Terra gira, por que não mudamos de lugar e mesmo refletindo: 'Terei sido um idiota ao realizar tantos desejos?'. Levar fantasias como a de Rubião para o palco traz implícito o risco do ridículo. Yara de Novaes tira o melhor disso a seu favor, mostrando que aquele universo cabe no mundo de qualquer um.

CAROLINA BRAGA
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Grupo 3 de Teatro
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